ANIVERSÁRIO DE UM DOCE AMIGO DAS MATAS DE PETRÓLEO NO AM.
Aconteceu em um domingo de chuva. Escapei entre os pingos para ir até a praça e planejar o cumprimento da promessa de celebrar os 60 anos do Olavo Caroço, indígena desaldeado e sem território da floresta, de onde, um belo dia, na metade dos anos 50, brotou petróleo, no município em Nova Olinda, AM.
O Márcio, nosso amigo comum, garantia a presença do Olavo Caroço na praça-dormitório, que era protegida pela "Santa" Inês, uma vizinha que, de tão magrinha, corria o risco de voar quando a ventania balançava as mangueiras. Verifiquei a presença certa do Márcio no seu "trono cativo", onde seria coroado o aniversariante Caroço. Ao nosso lado, estava uma galinha assada, sabrecada na churrasqueira da esquina. Havia até um sinal de bolo "fake", em cima do qual colocaríamos uma vela acesa.
Mas quem é esta personagem Olavo Caroço para ter esta festa silenciosa e sem publicidade? Ele é um nativo indígena da etnia mundurucu, considerado "mudurucanha", que é uma classificação para aqueles dissidentes dos mundurucus, considerados afastados e não legítimos, um "rana" (falso). Nossa hipótese vai por aí, ouvindo a história do Caroço, provavelmente foi um daqueles que deixaram de ser aldeiados por não aderir negociação com os não nativos, perdendo assim suas terras e entregando sua força de trabalho, por pouco tempo. Originário das matas do Rio Madeira, que se estendem aos fundos da cidade de Nova Olinda do Norte, no Amazonas..
Podemos especular que, embora a invasão das terras dos povos originários seja milenar na história da humanidade e centenária, na ocupação da Amazônia, foi em 1955 que a Petrobrás, fundada em 1953, encontrou, prospectando as terras, encontrou o "ouro preto" (petróleo). Tanta foi a empolgação do achado na época, que uma foto do governador com terno branco manchado de óleo ganhou manchetes dos jornais, Brasil à fora.
Intensificando a dissidência entre os mundurucus, surgiram, entre eles, os "mundurucanhas". Meu amigo aniversariante é o "Índio Caroço", preconceituosamente, como o chamam, que nasceu no contexto de expropriação da terra, que junto com seus pais e irmãos entraram no trabalho da coleta da castanha e da pesca para entregar aos patrões dos rios até desistirem de por lá ficar.
O "Caroço" veio para Manaus ainda jovem, carregou seu estigma de "baixinho, índio manso e cachaceiro". Este último título magoa o amigo que escreve essa crônica. Embora seja verdade, minha amizade com ele vem em forma de compaixão pela doença de alcoolismo, que tomou conta de sua vida. Quando se excede, cai dos bancos, machuca o seu rosto redondo que nem caroço de tucumã.
Não é para menos, mas podia ser pior. Entretanto, antes do agravamento da dependência do álcool, trabalhou numa casa de material de construção, entregando a força de seus braços fortes e sua mansidão. Com a falência da casa, seu abandono não foi tão dramático. Houve gratidão da parte do patrão que o dispensou, mas permitiu que passasse as horas de sono, induzido pelo álcool, atrás do velho prédio da loja.
Sim, mas a festinha miúda e silenciosa de aniversário no banco da praça? Tudo pronto e nada do Caroço chegar. O Márcio que não tinha comido nada, quando deu 12 horas, queria morder o frango e assim fez.
Eu saí para chamar o "Caroço" e o encontrei sentado na lateral do casarão de material de construção. Avisei o combinado e disse que nós estávamos no banco da praça esperando. Não veio. Soube que as filhas do velho patrão prometeram um bolo. Ele estava feliz lá, mas ficaria conosco também.
Enfeitamos o banco da praça e cantamos o parabéns para ele, mesmo ainda ausente.
Gravamos um vídeo, no qual o Márcio declarava a amizade ao companheiro de garrafinha e de caminhada nas ruas.
No dia seguinte, encontrei-me com os dois e tive certeza de que comeram o frango e os dois brigadeiros que deixei. Foi triste vê-lo sem dizer "coisa com coisa", que o Márcio traduzia.
Passado um ano da morte do Márcio (15.12.2023), sonhei com eles e os vi, um atrás do outro, seguindo como irmãos, um já com Deus e outro caminhando sozinho em busca de um novo amigo neste NATAL DE 2024..
Bem que poderíamos ser os guardiões das matas habitadas pelos Mundurucus e cuidar dos desaldeanos que ficaram sem suas terras!
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